
António Pacheco foi uma das grandes referências nos anos 1980 e 1990, jogou no Portimonense e Benfica, entre outros, e abre o coração em entrevista ao jornal A BOLA. Fala da atualidade do Benfica, clube do qual é sócio há 36 anos, elogia Rui Costa, Roger Schmidt e António Silva e recua ao passado para recordar pistolas, bruxarias, ácido nos jogos contra o FC Porto nas Antas.
– Como se vive este Portimonense-Benfica, quando tão pouco falta para o fim do campeonato, em Portimão?
– As conversas sobre o jogo são as normais e a verdade é que as pessoas também desistiram cedo de tentar ir ao estádio porque facilmente perceberam que os bilhetes foram todos vendidos. A euforia viveu-se mais há alguns dias.
– E como é que a equipa do Benfica estará a viver esta ansiedade?
– Esta pressão, esta ansiedade, esta euforia… Toda ela é muito mais exterior do que interior. Os jogadores encaram isto com normalidade. Têm noção da responsabilidade do momento, mas ser jogador do Benfica é isto mesmo: ter de encarar os jogos todos com normalidade e tranquilidade porque são sempre jogos para ganhar, sejam eles quais forem. A experiência adquirida pelos jogadores em clubes grandes permite-lhes fazer a uma boa gestão emocional dos momentos.
– Que ambiente tens encontrado na Luz nos jogos a que tens assistido no camarote presidencial?
– O presidente [Luís Filipe] Vieira já o fazia [convites], nem sempre no camarote presidencial. E o Rui [Costa] optou agora por trazer para o camarote presidencial ex-jogadores e ex-colegas, glórias do clube. Dá-me a sensação de que o Rui se sente bem ao lado de quem o respeita e gosta dele.
– Jogaste com Rui Costa e agora como o vês como presidente?
– Não vou falar dele como jogador porque toda a gente sabe o que ele foi. O Rui Costa presidente, felizmente para o futebol português, é uma lufada de ar fresco porque muito sinceramente já deixei de jogar há 22 anos e isto é sempre mais do mesmo que eu via nos anos 1970 e 1980. Espero que o Rui [Costa] consiga promover o regresso de pessoas que sabem respeitar o futebol, e que elas se candidatem aos clubes.
– Num primeiro ano com um treinador estrangeiro, o Benfica pode ser campeão.
– Na minha opinião foi fundamental vir um treinador de fora nesta altura, quando bem assessorado. Ele não tem nada que estar a ver aqueles programas televisivos de pessoas a falar sobre futebol que não fazem a menor ideia do que é um espaço futebolístico. Há uma série de filtros até a comunicação chegar a ele e, se for bem assessorado, não perde tempo com coisas que não interessam e o foco é maior. Tinha alguma confiança nele [Roger Schmidt] até para limpar velhos hábitos que havia ali de antigos treinadores portugueses, neste caso específico até mais do [Jorge] Jesus, pois o Jesus não é só o treinador, é também tudo o que envolve à volta dele e isso estraga muito o trabalho de base dos clubes de futebol. Por tudo isso acho que nesse aspeto o Benfica beneficia muito da vinda de um treinador estrangeiro e deste em específico. Benfica precisava de um treinador que viesse de fora, como veio Schmidt.
– Há algum jogador que destaques na equipa?
– Até fica difícil, o que me deixa bastante satisfeito, destacar. Têm sido muitos, nem sempre em conjunto, mas notamos que todos têm feito uma época muito boa. Mas, se tiver de destacar algum, pela sua juventude, pela sua regularidade, pela forma surpreendente como se impôs a todos os níveis, destacaria António Silva. Transformar aqueles grãos de areia que estavam na engrenagem do Benfica ainda reforça mais aquilo que eu penso sobre o treinador. Tem feito um trabalho excelente.
– Será este David Neres o Pacheco desta equipa ou pensas que pela velocidade é mais o Rafa?
– [Risos] São todos jogadores diferentes e ainda bem que é assim. Acho que o João Neves será o João Moutinho do Benfica e o Rafa será mesmo o Rafa, porque é um jogador incrível que consegue levar-nos da euforia ao desespero no espaço de segundos [risos]. Talvez o Rafa esteja mais próximo de mim pela questão da velocidade e também por às vezes andar ali esquecido e parecer que desaparece dos jogos [risos].
– Nesta fase da época, o Benfica tem quatro pontos de vantagem sobre o FC Porto. A pressão é maior?
– O Benfica não tem de pensar nos outros. Tem é de definir muito bem o seu objetivo que é ganhar em Portimão e no mínimo empatar em Alvalade. Tem de prepará-lo e executá-lo, olhar para dentro, pois toda a gente sabe que tem capacidade. O Benfica tem qualidade para isso. Depois tem o último jogo com o Santa Clara em casa e até podia ser com o Bayern. Nem há conversa.
– Nem te passa pela cabeça que o Benfica não seja campeão?
– Não, não. De maneira alguma. Até porque seria uma grande injustiça. Se analisarmos a época, se há quem merece ser campeão é o Benfica. Já houve episódios que fazem duvidar, mas há no plantel cinco ou seis jogadores com experiência que têm a obrigação de passar bem a mensagem e de segurar os mais novos. No último jogo, lá estarei na Luz e espero que a viagem de regresso ao Algarve tenha os 300 quilómetros que normalmente tem porque a seguir ao FC Porto e ao Inter parecia que era de 30 mil quilómetros.
– Tens saudades daqueles tempos em que jogavas?
– Tenho muitas saudades e convivo muito mal com isso. Eu até iniciei uma carreira de treinador, mas os aspetos exteriores do jogo não me deram motivação para seguir uma profissão tão complexa, difícil e, às vezes, até perigosa. Portanto abandonei cedo essa ideia, apesar de achar que tenho algum jeito. (…) Tenho aqui alguma mágoa porque foram muitos anos, e têm sido muitos anos com muita gente ríspida. Tudo o que decidi foi em relação a mim e à minha vida pessoal e profissional. E as pessoas acham que temos de tomar decisões consoante aquilo que é o gosto delas. E aquela minha saída do Benfica e a entrada no Sporting [no verão quente de 1993], a questão do conflito com o selecionador [Carlos Queiroz] que me fez abandonar a Seleção… Depois as frustrações destas pessoas todas sempre a descarregar em mim durante tanto tempo. Talvez isso tenha sido a parte mais difícil para mim.
– És sócio do Benfica?
– Sou, há 36 anos. Desde que cheguei à Luz.
– O afastamento da Liga dos Campeões surgiu no momento da quebra da equipa.
– Acho que a quebra com o FC Porto… ou melhor os jogos com o FC Porto têm de ser trabalhados de uma forma específica. Tem de se perceber bem o enquadramento em que se vive e adaptarmo-nos àquele jogo específico. Não tem nada a ver com os outros. O FC Porto faz isso bem e o Benfica não. O FC Porto tira partido de uma agressividade que não tem o mesmo critério em relação ao Benfica. Se nós formos analisar os jogos vemos isso com relativa facilidade. Se calhar, em média, um jogador do FC Porto para levar um amarelo a equipa pode fazer 8, 9 ou 10 faltas. O Benfica à segunda falta tem um amarelo e aqui e ali são condicionados por aquilo que o FC Porto tem de excelente, que é trabalhar os jogos na sua antevisão. E, quando chega ao momento do jogo, vão os árbitros, os jogadores, os adeptos e a comunicação social condicionados. Apesar de não concordar tenho de respeitar as estratégias de cada um. Dou os parabéns ao FC Porto por isso, apesar de ser totalmente antagónico a essa forma de estar. O Benfica tem de trabalhar o jogo do FC Porto de uma forma específica porque os desaires com o FC Porto podem repercutir-se nos jogos seguintes e foi o que aconteceu com o Inter e em Chaves.
– Quando defrontavas o FC Porto como jogador já era assim?
– Era muito mais. Era assim vezes 6, 8 ou 10. Desde as pessoas nos mostrarem as pistolas, desde bruxarias espalhadas pelos corredores, desde ácidos nos balneários, desde não nos permitirem fazer o aquecimento no estádio principal e obrigarem-nos a ir para o campo secundário, passando estrategicamente pelo meio de centenas de adeptos a cuspirem-nos. Desde foguetes e motorizadas sem escape a noite inteira à porta dos hotéis onde estávamos a dormir…. Tudo. Tudo o que pode imaginar foi feito.
– Isso acontecia cada vez que jogavas no Estádio das Antas?
– Sempre. Sempre. Por exemplo: num dia de 30 graus fomos ver o relvado quando chegámos e estava completamente seco, depois já não conseguimos lá fazer o aquecimento e quando entrámos para começar o jogo as faixas laterais estavam completamente alagadas. Valia tudo! Desde o simples funcionário a chamar-nos nomes, a cuspir-nos e a ofender-nos. Tudo, tudo o que possa imaginar.
– Viveste isso só na década de 1980 quando eras jogador do Benfica ou também quando estiveste no Sporting?
– Nas décadas de 1980 e de 1990. O FC Porto tem um inimigo de estimação que é o Benfica e com o Benfica é tudo muito mais. No Sporting também, não tanto, mas também. O FC Porto não pode permitir que o Sporting se coloque no meio do seu inimigo de estimação. Por questões estratégicas quando é preciso apertar o Sporting eles apertam sempre. Foi visível o ano passado. Foi visível este ano. A nós só nos restava tentar vencer independente dos aspetos exteriores. Convém dizer que o FC Porto nessas alturas também teve excelentes equipas com jogadores de altíssima qualidade. Ao longo dos anos as coisas começaram a ser mais expostas e, entretanto, desenvolveram novas técnicas. Hoje as coisas já são diferentes, com o mesmo objetivo, mas estratégias diferentes.
– Quais são agora?
– Vê-se. Bonecos pendurados nas pontes, ataques permanentes de toda ordem, ataques às casas do Benfica, ameaças a tudo e a todos, controlando as pessoas que estão ligadas ao futebol, ameaçando através das famílias e dos negócios. Acho incrível como é que até hoje, sendo o Benfica um clube tão poderoso na sua dimensão, e sendo a indústria do futebol uma coisa que tem uma economia tão forte, não se legisla tudo de forma a salvaguardar todos os clubes. É só fazer como vemos noutros países. Nada mais. Adorava que isso fosse feito aqui para que o nosso campeonato fosse de referência a nível europeu. Alguém tem que parar e pensar no futuro do nosso futebol e perguntar o que é que nos impede de ir mais além.
– O que é que o futebol te deu?
– Deu-me tudo. A minha vida social, amigos, possibilidades financeiras de começar vidas novas, cultura… Sem o futebol seria uma pessoa completamente diferente. Tudo o que havia para ganhar em Portugal ganhei. Disputei os jogos mais importantes que há para disputar. Joguei em grandes clubes e com grandes jogadores. Ainda hoje sou conhecido por aquilo que fiz.